29 de maio de 2010

O INCONSCIENTE É PULSIONAL

Os conceitos fundamentais - inconsciente e pulsão - que trabalhamos nos Seminários em Londrina levam a refletir o quanto as idéias freudianas semeiam divergências e discussões polêmicas até hoje, mesmo dentre os que fazem parte do meio psicanalítico, pois embora não ocorram dúvidas quanto à existência do funcionamento inconsciente em nosso aparelho psíquico, no que tange à sua natureza e à sua fundação, há muitos percalços, mal-entendidos e dissidências...
Descrever o inconsciente e o funcionamento do aparelho psíquico, bem como sua implicação na formação dos sintomas, não parece tarefa difícil nem mesmo para aqueles que se iniciam no campo psicanalítico. No entanto, no que tange ao conceito de pulsão e sua articulação ao conceito de inconsciente, ao seguirmos os passos do mestre, nos defrontamos com pontos nodais e por vezes enigmáticos em seu percurso teórico, o que nos deixa com a bússola na mão e caminhos novos a percorrer.
“O Inconsciente é pulsional”, nos mostrou Freud ao afirmar que o que se encontra recalcado diz respeito à sexualidade infantil, e o retorno do recalcado é o que insiste sob a forma de atos falhos, lapsos de linguagem, sonhos e sintomas – matéria –prima da vida psi cotidiana – tanto a nossa quanto a de nossos pacientes.
Mas, para compreender não somente o seu retorno, mas também sua origem, há que se recorrer a um conceito fundamental na psicanálise – a pulsão.
Embora o termo TRIEB tenha sido alvo de traduções não confiáveis, sabemos que TRIEB não é INSTINKT, e é justamente nesta diferença que reside o alicerce sobre o qual se edifica o que considero de mais original no pensamento freudiano: o homem, diferentemente de outros seres do reino animal, não é governado por instintos, por um comportamento geneticamente herdado; ao contrário, rompendo com a ordem natural do mundo, submetido à linguagem e ao simbólico, o ser humano está para sempre destinado a buscar sua satisfação em objetos variados e das formas mais inusitadas.
“Pulsão”, nos diz Freud “é um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático”. Nem física nem psíquica, a pulsão é o que, articulando mente e corpo, rompe com o pensamento cartesiano vigente à época freudiana. Mas, como entender o corpo e o psíquico envolvidos no pulsional? Freud responde:
Pulsão é o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo”. (A Pulsão e seus destinos: 1915,p.142)
Se, por um lado, a pulsão representa psiquicamente as excitações que emanam do interior do corpo, por outro lado ela só pode ser conhecida psiquicamente através de seus representantes (idéia e afeto). Uma coisa é a pulsão, outra coisa é o representante psíquico da pulsão e outra ainda é a pulsão enquanto representante do somático no psíquico. De que corpo falamos aqui? Certamente não é do corpo biológico ou natural, pois, se assim fosse, reduziríamos a pulsão ao campo biológico ou instintivo. É em relação ao corpo submetido ao simbólico e à linguagem, que se refere Freud ao afirmar que as pulsões têm sua origem numa fonte somática, nos órgãos de onde provém a excitação, denominados de “zonas erógenas”, e seu objetivo é a satisfação através de um objeto que pode ser real ou fantasmático, ou seja, do campo das representações.
Nos “Três Ensaios sobre a sexualidade” (1905), Freud apresenta como fontes da sexualidade infantil a excitação das zonas erógenas, as quais podem ser qualquer parte do corpo, até mesmo nossos órgãos internos, enfatizando os orifícios do corpo como aquelas “portas abertas” privilegiadas no encontro com os cuidados maternos. Qualquer parte do corpo pode ser eleita como zona erógena, desde que ofereça condições de evocar prazer.
Do ponto de vista da psicanálise, sabemos que o nascimento de uma criança não garante o nascimento de um sujeito, pois operações importantes se farão necessárias para que o sujeito apareça enquanto resultado delas.
Nos primeiros tempos, a mãe responde quase automaticamente àquilo que supõe ser do campo das necessidades da criança, mas muito cedo se cava uma defasagem entre, por um lado, a dialética da demanda e do amor e, por outro lado, a da necessidade e da satisfação. Assim, os primeiros encontros do corpo(carne) com o mundo(Outro), imprimirão marcas psíquicas que correspondem às experiências de satisfação originárias. Através do diferencial prazer-desprazer, cada pulsão se instala articulando uma parte do corpo com um objeto de satisfação; é o que permitirá o estabelecimento do circuito pulsional que constituirá um sujeito. Lacan utilizou-se do vel da alienação para demonstrar como se dá tal processo, que envolve 2 operações: alienação e separação. Ao colocar-se em posição de alienação a criança oferece seu corpo à demanda do outro e comparece como objeto-coisa. O movimento pulsional da mãe que a toma como objeto deve apenas contorná-lo e deixá-lo cair, para que retorne como sujeito, efeito da separação. Portanto, é perder-se como objeto que possibilita o nascimento do sujeito. Concluímos com Lacan que “lá onde está o sujeito não se encontra o objeto, e lá onde está o objeto da pulsão não se encontra o sujeito”.
Se, com Freud dizemos que a pulsão é o conceito limite entre o físico e o psíquico, com Lacan, dizemos que é o conceito limite entre o Real o Simbólico. O Simbólico refere-se às representações pulsionais inconscientes, significantes inscritos a partir das experiências de alienação e separação, dos encontros e desencontros do corpo com o objeto e que possibilitam a experiência da falta e sua articulação na palavra, tal qual o netinho de Freud e a brincadeira do Fort-Da. Na ida da alienação e na volta da separação, o que fica é uma marca, “Representação de coisa” para Freud, “significante” para Lacan, correspondem estão aos representantes pulsionais que se fixam e se presentificam no aparelho psíquico como o recalcado original. Marcas simbólicas que constituem o inconsciente e que formam uma trama de representações (cadeia significante) sempre abertas a novas conexões, novas formações do inconsciente, possibilitando a associação-livre como método clínico. O analista, provocando a abertura de novas vias associativas, permite trazer à luz os significantes recalcados que representam a pulsão no inconsciente. Fundadores do inconsciente, os significantes determinam o sujeito e seu destino. Destinos da pulsão, destinos do sujeito.
A eficácia da psicanálise depende dos seus efeitos sobre um dos destinos da pulsão: o recalque e sua manifestação sintomática. A interpretação, ao agir sobre a rede de significantes presente no discurso, tem efeitos sobre a satisfação pulsional à qual se mantém preso o neurótico. Como afirma Laznik: “o trajeto que o neurótico emprega para satisfazer a pulsão lhe causa muito sofrimento e podemos esperar de uma análise que ela lhe permita poder chegar aí de maneira mais econômica.”
Por outro lado, há manifestações na clínica que não comparecem pela via da palavra ou do sintoma, mas que também tem valor significante e que demandam interpretação. Referem-se ao Real da pulsão que fica fora para que a representação se inscreva no psíquico, e se refere à energia desligada, cuja manifestação privilegia-se sob a forma de angústia ou “zona de relação do acting-out” definida por Lacan. Mas, esta forma de comparecer na transferência pela via da repetição, diz respeito aos outros 2 conceitos fundamentais sobre os quais nos debruçaremos nos próximos seminários.
Valéria Codato - maio/2010


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