Angela Valore*
Em suas “Novas Conferências”, Freud afirmava que “não tem o direito de se envolver com a psicanálise aquele que não adquiriu, em uma análise pessoal, as noções precisas que somente essa é capaz de oferecer”. Recomendação cujo peso parece, em nossos tempos, assim como é o caso da maioria das nossas leis, encontrar-se preocupantemente relativizado, ou francamente substituído por referências mais ligeiras. Mais como está na moda.
Entretanto, trata-se de um pressuposto ético, a ser tomado com todo o rigor, cujas conseqüências devemos reconhecer. Entre elas, a primeira e sem dúvida a mais grave, define de modo radical o verdadeiro lugar de formação do psicanalista: o divã.
É na análise pessoal que se adquirem as “noções precisas” e também aquilo de que se autoriza um analista, o que dá a alguém o direito de se meter com a psicanálise. Não são os anos passados nos bancos das escolas, ainda que sejam marcados pelos mais sérios estudos.
Lacan alertava que a psicanálise é um remédio para a ignorância. Mas que nada pode contra a idiotice. O que nos impõe concluir que ambas, idiotice e ignorância, pertencem a campos diferentes, mais ainda, que esta última pode ser entendida como uma condição para a psicanálise. Idiota seria, portanto, aquele que não sabe que ignora, tanto quanto o que supõe saber. Para ele, a psicanálise nada tem a oferecer. Já aquele que é capaz de reconhecer que ignora, de supor um saber Outro, estaria vacinado contra a idiotice e a princípio, apto à cura analítica. E, portanto, a suportar as exigências do percurso que leva da posição de sujeito dessa cura à função da escuta que a conduz.
A ética, que nos concerne a todos, coloca diante de nós, a cada passo, a questão “agiste conforme o teu desejo?” de cuja resposta depende a nossa posição na manutenção do discurso analítico. A máxima proposta por Lacan como condição primeira de haver analista, “não ceder do seu desejo”, é uma exigência cujas garantias não podem, em absoluto, ser obtidas a não ser numa análise pessoal.
Se não há analista fora do alcance dessa máxima ética da psicanálise, vê-se bem o que faz um psicanalista. E onde.
Lacan dizia que o analista ocupa o lugar do morto já que ele está ali para oferecer o semblante de que o outro precisa para falar. Não é um lugar fácil de ocupar esse, destituído de consistência e cuja condição é o des-ser, para a qual nenhuma formação prepararia não fosse a análise. Quer dizer, o que é sustentar o ato analítico não se aprende em livros.
Conta-se que Salvador Dali, querendo provocar seus interlocutores, compareceu a um evento com um esparadrapo no nariz. Muito depois, perguntou a Lacan porque este não havia dito nada quando o encontrou com o esparadrapo. E concluiu: “É fantástico, você foi o único a não dizer nada.” A esse respeito, A. Jerusalinsky afirma que o dizer nada fez o laço, o que solda o analisante ao par analisante-analista e conclui que “do real, apenas o recorte que nos permite a intersecção borromeana. Um resto. Mais nada. É disso que o analista é semblante.”
É ainda Jerusalinsky quem nos lembra que, apesar do imaginário popular, que nos representa como as pessoas mais estáveis, os analistas nem de longe são as pessoas mais tranqüilas, como o testemunham “suas biografias, seus amores, as migrações, as cisões, a circulação por diferentes auditórios, cidades...a curiosidade de percorrer os diferentes âmbitos do conhecimento...”
É que é assim que o analista transmite que nada está resolvido e que isso não é um mal. E transmite também que a formação pode ser interminável, na medida em que o analista sabe que o inconsciente não tem fim.
* Angela Valore - psicanalista,presidente e membro-fundadora da LETRA-Associação de psicanálise; analista-membro da Association Lacanienne Internationale (França), Professora na graduação e pós em psicologia e psicanálise na UTP e na PUC-PR.
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