14 de outubro de 2010

JAIRO MARQUES

Solte essa criança!


Sou grato ao colo da minha mãe. Mas grato mais ainda sou à decisão que ela teve de me "soltar" para a vida

LEVEI MUITO A SÉRIO na minha infância aquela ordem do Milton Nascimento: "Vida de moleque é vida boa. Vida de menino é maluquinha. É bente altas, rouba bandeira Tudo que é bom é brincadeira".
Na época, minha cadeira de rodas era praticamente uma jamanta de tão grande e desconfortável, mas nada me impedia de ser criança.
Ia para a rua nas férias de julho e soltava pipa até os beiços ficarem rachados de tanto vento na cara. E, com a molecada empurrando minha "embarcação", eu me embrenhava nos matos para brincar de desbravador.
Mesmo tendo as pernas ou a coluna engessadas para tentar reparar a funilaria amassada que a pólio me deixou, minha mãe não me impedia de visitar meu mundo imaginário ao lado dos meus amigos, todos "responsáveis", no alto de seus seis, sete, oito anos.
Aquele ritmo de viver só era quebrado quando aparecia pelo caminho um adulto chato para dizer: "Ele é doentinho? Nooossa, a perninha dele é tão fininha! Ôh, sofrimento, né? Ele não pode ficar na rua, não!".
Lembro-me de ficar meio confuso e cheio de dúvidas com aquelas intervenções. Afinal, para mim, deficiência nunca foi uma doença, eu não me sentia triste com meus cambitinhos e tinha uma infância pra lá de legal, como deveria ser.
Criança pode até festejar ou estranhar as diferenças do amigo que é ceguinho, cadeirantinho, surdinho, mas logo ela deixa tudo para lá, porque o importante é saber brincar, é saber comer areia sem se engasgar, é saber imaginar os monstros e as fadas.
Mas o adulto... esse sim é um mala sem alça que quer proteger a todo o custo, que quer defender sem mesmo haver uma guerra. Se quem não cai não aprende a se levantar, quem não se levanta -por motivos diversos- só aprende que pode voar se não é cercado de um monte de galinha choca o tempo todo.
Foi moleque que descobri, aos pouquinhos, que eu não conseguiria ser o artilheiro do time, mas poderia me arriscar no gol fazendo defesas heroicas com meus braços longos. Foi moleque que percebi que não poderia correr no pique-esconde, mas poderia ser o fiscal da brincadeira para "ninguém roubar!".
Quando gente grande chegava no meio de minhas zoadas de crianças, só era legal quando inventava regras que me ajudavam a brincar "de igual para igual". Mas, quando a ideia era me fazer de "café com leite" porque eu, supostamente, era mais fraco, achava um saco.
Toda criança precisa de cuidados, de atenção, de guias para chegar com segurança às outras fases da vida. Sou grato ao colo da minha mãe, que foi a minha forma de locomoção até os seis anos de idade. Mas grato mais ainda sou à decisão que ela teve de me "soltar" para a vida, de me deixar ter sido criança.

O MUNDO DE EMILLY
Lá no blog, fiz uma semana em homenagem à molecada. Tem dica de filme com história falando de diversidade, tem história de um bebê cujo pai é tetraplégico, tem entrevista com o Maurício de Sousa sobre seus personagens Dorinha, que é cega, Humberto, que é surdo, Luca, que é cadeirante, e Tati, que tem síndrome de Down.
E tem também um ensaio realizado pelo fotógrafo Arthur Calasans sobre o mundo de uma menininha chamada Emilly e sua batalha por uma cidade mais acessível.

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